Curadoria: Cacá Fonseca
Galeria da FAV / Goiânia / Goiás
galeria-Galeria
texto: Cacá Fonseca
“Não há terra sem saúvas”, aforismo, profecia, praga, enunciação de 1839 da Revista de Agricultura, convocada nesta montagem como uma versão velho oeste do “Manifesto das espécies companheiras”, de Donna Haraway. Bang bang! À Cachorrolândia e Gatolândia de Haraway, evoco a Formigalândia, onde coabitam carpinteiras, tanajuras, faraós, fantasmas, loucas, argentinas, de fogo, cabeçudas e a Saúvaland de Ana Flávia Maru, Saúva Cabeça de Vidro, Saúva Pasto, Henrique Borela, Saúva Limão, Octávio Scapin, Saúva Parda, Saúva-Preta, Saúva Mata-Pasto e muitas outras.
Às vésperas de celebrar o aniversário de 90 anos de Goiânia, esse coletivo multiespecífico de artistas, seres e agências faz tremer o slogan “Ou o Brasil acaba com a saúva ou a saúva acaba com o Brasil”, com o gesto fabulatório onde os feromônios da comunicação das formigas - química sutil e precisa - refundam a genealogia da história urbana do Goiás Bandeirante e seu clímax heróico e ludoviquense da invenção de Goiânia.
Aprender a reconhecer os feromônios das saúvas, percorrer a sua trilha e adentrar nessa galeria subterrânea e misteriosa, da qual só avistamos a paisagem topográfica do formigueiro, é como criar um duplo da ação de cortar, transportar e dar de comer ao fungo-profundo, o próprio alimento das saúvas. Arquivos do ‘tecnobiopoder’, arbítrio e parâmetro canonizados como autoridade sobre quem pode viver e quem deve morrer para nascer Goiânia, são cortados, transportados e entregues ao fungo, fazendo mover as íntimas relações entre autoridade, discurso e carne. Nos termos de Donna Haraway, “somos a carne uns dos outros, comemos e somos comidos”.
O formigueiro é sobretudo sobre o que não vemos, o que habita o escuro, úmido e desconhecido subsolo. Nesse arquivo insondável, povoado por seres ctônicos, do grego khthónios ou khthón, termo usado para designar terra e subterrâneo, a autora convoca uma tensão entre as divindades e criaturas das profundezas e os deuses olímpicos, aqui associados aos céus, planos, mapas e desenhos urbanos concebidos desde um gabinete demiúrgico, ocupado pelo pacto entre arquitetura, urbanismo, colonialidade e modernidade.
Império das formigas, Um minutos para uma imagem, Monumento ao trabalhador, Palavras mordidas, Dípticos e Folgança ou Briga de Galo no Pedro Ludovico testemunham mundos coletivos coconstruídos, onde a inseparabilidade entre humanos e mais que humanos, coreografam outras ontologias dos modos de desenhar, narrar, representar e fabular a história de Goyaz. Ao reescreverem o nome do estado, e afirmarem nessa grafia a retomada da letra Y, me lembro da palavra KoYo, usada por Davi Kopenawa Yanomami para designar saúva.
Enquanto pisamos aqui, esse pretenso terreno estável, estejamos certos de que sob a galeria da FAV, aterrada no substrato do Goiás com i e s coexiste a Galeria KoYo, entranhada na Saúvaland e erguida sob os escombros de Goyaz com y e z. A exposição “Não há terra sem saúva” forja outra sintaxe para uma geografia invisível e incontestavelmente presente, onde as ‘infinitas e nada inocentes combinações entre o viver e o morrer’ causam assombro e fazem frente a modos de parentesco radicais, dissociados dos atributos da similaridade e da filiação, revolvendo a terra e compondo de grão em grão, um arquivo às avessas.
Do que se vê, a terra acumulada na superfície, reimagina-se o desenho de espessura fantasmática, submersa, fúngica e infra perceptível do surgimento desta cidade-território-narrativa. A pergunta encontrada na folha de rosto do Atlas da História Natural de Goyaz, “As imagens da destruição devem ser destruídas?”, lampeja a potência oracular dos arquivos, seus arquétipos, mitos e forças; espirala o tempo rumo a nossa condição geológica, que é soberana em evidência à narrativa antropocentrada; e abre uma trilha ferormônica, onde pisa e manifesta Donna Haraway, quando afirma “sou uma terráquea historicamente situada” para em seguida dizer “sou uma mentirosa, sou uma contadora de histórias”.
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